26
set | 2019
Leito 47
Há apenas alguns dias sofri um infarto. Chamei um Uber às quase 4 da manhã e fui para a Santa Casa. Às 6 e meia da manhã eles já tinham salvado minha vida. Cateterismo, angioplastia e três stents na coronária direita e lá fui eu para a sala de repouso das emergências.
Em nenhum momento me falaram de dinheiro. Pensei: se eu tivesse um plano de saúde teria morrido. A moça da recepção chamaria o representante do plano de saúde para saber se o plano “cobria” infarto; o representante ligaria para seu chefe que ligaria para o supervisor que ligaria para seu superior que perguntaria se o infarto era urgente e necessária a internação... E tudo isso para economizar... Pensava eu assim deitado no leito 47 da sala de observação...
Quando cheguei na Santa Casa às quase 4da manhã a moça da recepção me perguntou se eu tinha SUS, disse que talvez, mas que não sabia o número e nem tinha carteirinha. Ela me perguntou mais nada. Pegou meu documento, fez uma pulseira daquelas que não é possível arrancar do braço e me disse “vá direto ao consultório 2 e fale com a médica!”. Foi tudo que tive como trâmite burocrático. Depois a salvação.
A médica me disse: “De um a dez, qual a nota que o Sr daria para a dor que está sentido?”. “7”!
Ela se levantou e me perguntou se eu podia andar e pediu que a acompanhasse. Passamos pela sala de espera, entramos na sala dos primeiros atendimentos e me pediu para sentar e esperar. Fiquei não mais que cinco minutos sentado e chegou um maca e um monte de gente.
- Por favor, senhor, deite-se aqui. Vamos fazer alguns exames, pois o senhor pode estar tendo um infarto.
Levaram-me para uma outra sala e, como em um filme americano, puseram aquele biombo que separa uma cama e outra, que tem rodinhas; me tiraram toda a roupa, me rasparam - soube que isso se chama tricotomia - para o caso do médico fazer o cateterismo pela virilha; minhas roupas foram para um saco plástico, minhas coisas pessoais como carteira e documentos foram para outro e meu dinheiro foi para outro. Cada coisa vai para um lugar diferente. Quando saí, peguei tudo de volta exatamente como entreguei.
E passeei pelos corredores da Santa Casa. Sobe elevador, pega corredor.... Chegamos à sala onde seria feito o “procedimento”. O médico escolheu fazer o cateterismo pelo radial...
Tinha bastante gente na sala de procedimentos. Eu via no monitor uns negocinhos que deviam ser as veias do coração. Mexendo. O médico devia ver melhor que eu, pois eu não sabia exatamente onde estava aquele fiozinho que senti percorrer meu braço e meu peito. Senti “algo” no peito. Não foi preciso anestesia. E eu via “tudo” pelo monitor... Na realidade eu via nada... Somente umas veias que se mexiam... De vez em quando a cama se movia. Parecia Jornada nas Estrelas com aquelas coisas de ficção científica. Mas não era. Era eu ali naquela cama que se movia, ao lado do monitor e um monte de gente correndo para me salvar. E eles nunca tinham me visto na vida...
Sempre gostei da Santa Casa. Já levei um monte de gente para lá, que precisava de ajuda, de médico, que queria sobreviver. Acabei me levando, também... Agora eu digo: “eu amo a Santa Casa!”... Claro, né, estou vivo graças a eles lá.
Não paguei um tostão pelo miraculoso tratamento que me dispensaram. Eram pelo menos cinco exames todos os dias. Várias visitas de médicos. Remédios em tanto e tanto tempo. O tempo todo. Mesmo se sabemos que tem uma faculdade e estudantes que devem aprender o métier, todos eles estavam interessados em ajudar. Enfermeira, nutricionista, copeira, uma infinidade de gente que não queria que eu morresse. Por quê? Eu amo a Santa Casa!
O infarto em si aconteceu na madrugada de uma segunda-feira. Comecei a sentir os sintomas no domingo, dia em que almoço com minha filha. Estávamos subindo o viaduto Dona Paulina em direção à Liberdade, para comer em um simpático restaurante chinês, Ponto China-Casa de Massas - que tem só quatro mesas e faz uma excelente comida por um preço muito conveniente - quando comentei com minha filha:
- Sussu, parece que tenho uma bolha de ar no peito... Se eu arrotar bastante, será que passa?
Minha filha me olhou de soslaio...
Depois do almoço passeamos pela Paulista, tomamos sorvete Baccio di Latte e descemos a Augusta, a pé, conversando, como fazemos com frequência. Nesses domingos com minha filha, normalmente não levamos celular.
Cheguei em casa vi um filme na Netflix e dormi.
Acordei lá pela uma e meia da manhã e a bolha de ar parecia estar bem maior, bem mais pressionante. Sentado era mais cômodo, mas não era ideal.Tomei um Eno laranja (o mais gostoso... eu acho...), mas não adiantou... Claro!... Quando foi lá pelas três e meia da manhã chamei o Uber e fui para a Santa Casa. Passei pelo porteiro do prédio e disse “bom dia”. Entrei no carro e fui salvo pelo valoroso pessoal do hospital. Sem nenhum tostão.
Fiquei três dias e meio no hospital. Em observação. Tive tempo para pensar e aí, pensei: moro em um prédio. Quantas pessoas moram nesse prédio? Não liguei para ninguém naquela hora. Nem família, nem amigo e nem vizinho. Teria sido incômodo? Foi o que pensei: não quero incomodar ninguém. Mas vivemos em sociedade, vizinhos, amigos, família, médicos, bombeiros; uma estrutura estatal enorme existe para nos socorrer, mas existem falhas, dezenas de pessoas pedindo ajuda...
Moro em um prédio, em um condomínio, quantas pessoas poderiam ou saberiam o que fazer em casos de emergência? Não digo infarto, mas em situação de urgência variada... Quais são as aptidões das pessoas que moram em meu prédio? Estariam elas dispostas a ajudar alguém que elas nunca viram? Na Santa Casa sim.
Aí pensei: e se eu sugerisse para a síndica fazer um “catálogo” dos moradores e suas habilidades e disposições? Sabe, quando a gente é doador de órgãos e tecidos (como eu), está marcado na identidade; então, seria inconveniente fazer um “catálogo de habilidades e disposições” dos moradores?
Um dia, uma noite, alguém passa mal e não consegue chamar uma condução para ir ao hospital sozinho e quem sabe seu vizinho saiba como lidar com aquela situação...
Seria incômodo perguntar para os moradores se eles estão dispostos a ajudar? Sabe, infarto mata; cair no banheiro e quebrar a perna, ter um AVC, sentir uma repentina e profunda depressão também... Enfim, moramos todos em sociedade...
Eu fui salvo pela benevolência de um monte de gente que nunca tinha visto na vida. Posso concluir, mesmo se essas pessoas são pagas para fazer isso, que “é o trabalho delas”, como se diz, que existiu boa vontade naqueles atos corridos, às presas, para salvar alguém que nunca tinham visto na vida. E em nosso condomínio, seria possível contar com a solidariedade dos vizinhos com quem nunca falamos na vida?